Mini Dicionário da ARMY Pesquisadora: Hallyu

Autora: Maria Luiza Schaffer Isnard e Fernanda Vidal 
Revisor(a): Ariely Medeiros e Mariana Lima 

“toda análise requer primeiro, como instrumento, uma linguagem apropriada capaz de desenhar com precisão os contornos dos fatos.”

Marc Bloch, 2001, p. 123.

Ao iniciar uma pesquisa científica, os pesquisadores devem antes de tudo delimitar o seu objeto de estudo e, para isso, é necessário que construam uma definição precisa dos termos-chaves que serão usados em seus trabalhos. No campo de Estudos da Hallyu, esse desafio inicial aperta ainda mais, uma vez que as suas palavras-chave ainda são temas de debates constantes não apenas no âmbito acadêmico, como também nas redes sociais; além de uma parcela considerável de suas bibliografias não estar traduzida para o português. Dessa forma, o Painel Como Fazer, a fim de auxiliar os nossos leitores a dar um pontapé inicial em suas pesquisas, se propôs a elaborar um pequeno dicionário composto por verbetes que definem e indicam referências sobre termos, que vão ser muito importantes para qualquer um que queira iniciar uma pesquisa que envolva o BTS.

Hallyu:

Autora: Maria Luiza Schaffer Isnard

Revisor(a): Ariely Medeiros e Mariana Lima 

  1. Origem do termo.

O termo surge em 1999 entre os panfletos em mandarim do Ministério da Cultura e do Turismo sul-coreano para se referir ao sucesso do K-Pop na China, tendo rapidamente se popularizado entre a imprensa do país estrangeiro (YOON; KANG, 2017, p. 4). Kim Bok-rae (2015, p. 155), antropólogo cultural, em seu artigo “Passado, Presente e Futuro da Hallyu” busca compreender as relações entre esses países através da Hallyu, traz para a discussão o significado dos ideogramas chineses que compõe a palavra — han (韓) e liu (流) — que tanto apontam para uma “onda/corrente” cultural coreana, quanto para um “um sopro violentamente congelante sobre a China continental” articulado pela Coreia do Sul. Com isso, ele expõe não apenas a ambiguidade do termo, como também as tensões culturais e políticas que a Hallyu produz e representa no Sudeste Asiático. Uma referência interessante que interpreta essas questões a partir dos K-Dramas é o artigo dos pesquisadores brasileiros de comunicação Daniela Mazur, Manuela Meimaridis e Daniel Rios “O Mercado de Streaming na Coreia do Sul: Disputas Internas e a Invasão Estrangeira”.

Com o tempo esse termo foi se expandindo, passando a abarcar cada vez mais produções culturais coreanas e sua difusão em novos países. Em linhas gerais, Hallyu passou a representar o “rápido crescimento de indústrias culturais coreanas e a sua exportação de produtos culturais, incluindo programas de televisão, K-Pop, animação e vídeo games”, um movimento em curso desde a década de 90, que fortaleceu a identidade nacional sul-coreana e a exportou para o mundo todo (JIN; YOON, 2017, 10). 

Desse ponto em diante se abrem novas questões. Esse fenômeno se deu ao acaso? Como explicar essa expansão? Por que estudar especificamente a Hallyu dentre outros processos de disseminação de culturas transnacionais?

2. Hallyu: um projeto Estatal.

Para explicar essa primeira questão, usamos como referência o artigo “A instrumentalização da marca nacional da Coreia do Sul: desdobramentos políticos da Onda Coreana” da doutoranda em comunicação Mayara Araujo, que associa a Onda Coreana aos processos de nation branding no país. Nele, a autora compreende como nation branding “um processo que envolve a aplicação de técnicas de marketing e comunicação no intuito de promover a imagem da nação” (ARAUJO, 2020, p.117-118) e ainda ressalta que, mais do que construir a internalização dos ideais nacionalistas, esse processo transforma o conjunto de símbolos nacionais de uma dada sociedade — sejam costumes ou pessoas — em uma marca capaz de moldar a percepção e os sentimentos de seus consumidores independente de sua nacionalidade.

Araujo (2020) analisa a ocorrência do processo de nation branding na Coreia do Sul, em especial a partir do anos 90, sendo o Estado seu principal agente de atuação. Isso porque, as indústrias culturais foram entendidas enquanto mecanismos de restauração da economia nacional, abalada pela crise do Sudeste Asiático. Na época, o próprio presidente, Kim Dae-jung, se auto proclamava como o “presidente da cultura”, tendo promovido a “injeção de capital e usufruto das novas tecnologias da comunicação para potencializar o alcance de audiência” (ARAUJO, 2020, p. 120). Em síntese, apenas é possível compreender o fenômeno da Hallyu se estudado enquanto um projeto do Estado sul-coreano de aprofundamento das relações capitalistas no país e de internalização e exportação de sua identidade nacional.

Nesse sentido, ainda estando atrás de entender as motivações do governo a atuar na promoção das indústrias culturais no país, nos serve alguns discursos do Ministério das Relações Exteriores que, em 2022, destacou a Onda Coreana como “um elemento importante da diplomacia pública coreana”, além de tratar de uma própria “diplomacia hallyu” (ALMEIDA et al, 2018, p. 125). Dessa forma, ressalta-se o caráter diplomático que a Hallyu representa para o país, uma vez que foi através da penetração global dessas indústrias culturais que a Coreia do Sul conquistou posições mais elevadas na escala de influência da ordem mundial. 

Essa dimensão fica ainda mais clara quando aplicamos o conceito de soft power do cientista político estadunidense Joseph Nye, definido como a “habilidade de conseguir o que se quer pela atração e não pela coerção ou pagamentos. Surge da atratividade de um país por meio de sua cultura, de sua política e de seus ideias”(ALMEIDA et al, 2018, p.123). Essa tática de construção de influência está fortemente presente nos discursos dos representantes sul-coreanos, além de estar bem relacionada com os processos de nation branding já mencionados nesse verbete, uma vez que é a partir das indústrias culturais que o país vende e internaliza uma identidade, de forma a moldar a percepção tanto interna quanto externa em relação a si mesmo. Uma bibliografia interessante que aborda a questão do soft power na Hallyu, em especial entre os K-Dramas é o artigo de Naiane Almeida e Marcos Nicolau,  pesquisadores brasileiros de comunicação e cultura de mídias digitais , “O poder de atração dos K-Dramas: o soft power e a hibridização no contexto do fenômeno global Hallyu”.

3. Hallyu no mapa: principais conceitos usados para a expansão regional e global deste fenômeno.

Para esclarecer a questão da expansão geográfica da Onda Coreana, alguns teóricos se valeram da “proximidade cultural” entre os países do Sudeste Asiático. Conectados por fluxos culturais e comerciais há centenas de anos, esses teriam optado pela importação de produtos coreanos em detrimento dos ocidentais,  visto que “eles se mostravam mais ‘inofensivos’ por dialogarem com questões identitárias compartilhadas no cenário do Leste Asiático, reafirmando valores locais” (como o confucionismo) (MAZUR et al, 2020, p. 90). 

Contudo, Jin e Yoon (2017, p.12), autores de peso internacional nesse assunto, ressaltam que essa argumentação se torna insuficiente, à medida que a cultura coreana passa a ser comercializada por todo o globo. Alguns  estudiosos se estendem ainda mais para a crítica desse conceito, como Lu Chen (2016, p. 3), pesquisadora de culturas digitais e nacionalismo com ênfase em China, que reconhece que os autores, ao se fundamentarem nesse conceito, pautam os estudos de Hallyu em uma abordagem centrada na oposição do Ocidente com o Oriente, de tal forma que “negligenciam a complexidade dos contextos históricos, políticos e culturais do Leste Asiático”. De certa maneira até o próprio significado da palavra “Hallyu” já aponta para o esvaziamento desse conceito, uma vez que demonstra o receio de outro país frente à penetração da cultura sul-coreana em seu território. 

Embora a crítica de Lu Chen tenha nos servido para questionar a ideia de uma “proximidade cultural”, a alternativa que ela dá a esse conceito se restringe aos K-Dramas em território chinês, enfatizando um suposto caráter “apolítico” dos dramas, em comparação às produções ocidentais e japonesas, que teria sido visto com bons olhos pelo governo chinês. É preciso pontuar que, além de considerarmos essa análise insuficiente para pensar a expansão da Hallyu em sua totalidade, pensamos que para categorizar as produções sul-coreanas como “apolíticas” é preciso perder de vista a base fundante desse fenômeno — a comercialização da identidade nacional promovida pelo Estado pensada como forma do país se adequar ao capitalismo — de tal forma que sua análise se torna insatisfatória mesmo para pensar esse caso particular. Por isso nos estenderemos mais sobre os estudos de Jin Dal Yong sobre o tema.

Jin Dal Yong (2018, p. 1), pesquisador referência internacional nos estudos de culturas transnacionais e mídia digital, em seu texto “Transnacionalismo, fluxos culturais, e a ascensão da Onda Coreana pelo mundo”,  situa essa discussão a partir da comparação da Hallyu com outros exemplos de exportações culturais do Sul Global, como as telenovelas brasileiras, enfatizando a  transnacionalidade coreana frente à limitação dos demais, que se restringe na comercialização apenas de alguns produtos isolados. De acordo com o Dicionário Crítico de Política Cultural de Texeira Coelho (1997, p. 358), por transnacionalidade cultural entende-se uma cultura “formada por estilemas (traços próprios a um estilo ou forma) e elementos de conteúdo pertencentes a mais de uma Cultura nacional de origem”. Ou seja, ao aplicar esse conceito à Hallyu, o autor defende que sua expansão global se dá em função do agrupamento de diversas culturas — exemplificando esse processo com a participação de criadores de todos os lugares dentro da indústria coreana. Além disso, ele também frisa o papel da popularização da internet e das redes sociais como os principais meios de acesso a esses conteúdos para consumidores internacionais.

4. Hallyu, uma periodização possível?

Alguns autores dividem a Onda Coreana em quatro períodos, indo de uma Hallyu 1.0 à 4.0. Esses recortes são orientados a partir da sua expansão geográfica, meios de circulação e os seus principais produtos vendidos. Trataremos a seguir de cada um desses de forma mais específica, usando como referência o artigo de Kim Bok-rae “Passado, Presente e Futuro da Hallyu” já mencionado anteriormente e o podcast “Isso não é uma treta de gerações” de Bárbara Dewet e Érica Imenes, produtoras de conteúdo digital sobre K-Pop

A Hallyu 1.0 tem seu início atrelado ao sucesso dos filmes e dos K-Dramas entre alguns poucos países do Sudeste Asiático, como a China e o Japão, nos anos 90 se estendendo até 2005. Sua capacidade de expansão era espacialmente mais limitada se comparada a outros momentos da Onda, uma vez que seu principal meio de distribuição eram os canais de TV e os CDs. Contudo, o ponto-chave desse momento é que ele foi o responsável pela criação da identidade nacional coreana e ainda por  “tornar os olhos do mundo para a Coréia”(KIM, 2015, p.157). 

É preciso ressaltar ainda que durante esse período, já haviam grupos de K-Pop fazendo grande sucesso, contudo à época a relevância das produções audiovisuais era mais determinante nesse processo. É possível dizer também que a produção de K-Dramas e filmes não terminaram com o fim desse período, ao contrário, foi se tornando cada vez mais influente, até porque se tratam de movimentos complementares, a popularização do audiovisual coreano auxilia o sucesso dos idols e vice-versa.

Na Hallyu 2.0, por sua vez, o principal produto vendido eram os idols de K-Pop e seu gênero musical — temas que serão aprofundados mais adiante nesse dicionário. Se iniciando em 2006 e indo até os dias de hoje, essa fase é marcada pela popularização da internet no mundo, que possibilitou a expansão para outros locais, se aprofundando na Ásia e chegando à Europa e à América do Norte. 

Ainda no horizonte de realização, a Hallyu 3.0, marcada pela difusão da K-Culture, e a 4.0, caracterizada pela massificação do K-Style, tem como objetivo principal tornar a identidade nacional coreana e seu estilo de vida objetos de comercialização e desejo transnacional. Dessa forma, a Coréia do Sul se tornaria parte do mainstream global. 

Por outro lado, há autores que dividem a Hallyu apenas em dois grandes momentos, são eles: a Hallyu, dos anos 90 ao começo dos 2000, e uma neo-Hallyu, ainda em curso. Sendo sua grande ruptura a popularização da internet, ou em termos técnicos a criação da Web 2.0, que possibilitou uma mudança da onda coreana como fenômeno de impacto regional para transnacional (ASSIS et al, 2021).

5. Conclusão.

Essa breve apresentação do termo se propôs a fazer alguns apontamentos-chaves do conceito, demonstrando a relevância que esse fenômeno possui dentro da esfera nacional coreana, assim como a sua influência internacional. Além disso, ao representarmos a Onda Coreana a partir de sua origem e fundação atrelada ao Estado e à crise econômica, frisamos que se trata de um movimento fortemente ligado à política do país e à manutenção de suas relações capitalistas. 

Destacamos ainda que as discussões presentes dentro dos Estudos da Hallyu são, em sua maioria, marcadas pela interdisciplinaridade, em função das diversas áreas que são mobilizadas por esse movimento que vão desde a história às relações internacionais. Por fim, ressaltamos que, por se tratar de um fenômeno ainda ocorrente, novas conclusões sobre o assunto podem vir a ser apresentadas, de forma que esse verbete não se propõe a ser uma definição eterna do termo, mas sim frutos dos atuais debates em que este está inserido.

Boa sorte nas pesquisas, ARMY!

Bibliografia:

BLOCH, Marc. A análise histórica. In: _____. Apologia à história.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p.113-141, 2001.

JIN, Dal Yong; YOON, Tae-Jin. The Korean Wave: Twenty Years, Retrospect and Prospect. In: ____. The Korean Wave: Evolution, Fandom and Transnationality. Maryland: Lexington Books, p. 10-19, 2017.

DUARTE, Paulo. Soft China:O Caráter Evolutivo da Estratégia de Charme Chinesa. Rio de Janeiro: Contexto Internacional,  v. 34, n. 2, p. 501-529, jul./dez. 2012.

KIM, Bok-rae. Past, Present and Future of Hallyu (Korean Wave). [S.l.]: American International Journal of Contemporary Research, p.154-160, 2015.

MAZUR, D.; MEIMARIDIS, M.; RIOS, D. O Mercado de Streaming na Coreia do Sul: Disputas Internas e a Invasão Estrangeira. Rio de Janeiro: Novos Olhares, v. 10, n.1, p.88-101, jan./jun. 2021.

 JIN, Dal Yong.Transnacionalism, cultural flows, and the rise of the Korean Wave around the globe. [S.l.]: International Communication Gazette, p. 1-4 , 2018.

YOON, Tae-Jin; KANG, Bora. Emergence, Evolution, and Extension of “Hallyu Studies”. In: JIN, Dal Yong; YOON, Tae-Jin. The Korean Wave: Evolution, Fandom and Transnationality. Maryland: Lexington Books, p. 3-21, 2017.  

ARAUJO, Mayara. A instrumentalização da marca nacional da Coreia do Sul: desdobramentos políticos da Onda Coreana. Temática (UFPB), v. 16, n. 08, p. 114-127, 2020.

BURGER, Mariana;  LIMA, Uallace Moreira; SPELLMANN, Samuel; VADEL, Javier. Poder na Eurásia e o futuro na Coreia do Sul: Impasses eleitorais e projeto nacional. Youtube, 18 mar. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=I2Qaz8vFLfo&t=2325s>. Acesso em: 26 jun. 2022.

CHEN, Lu. The emergence of the anti-Hallyu movement in China. Hong Kong: Media, Culture & Society, n.39, p. 1-17, 2016.

YANTI, Reza. The role of south-korea’s government in developing and sustaining Hallyu. Yogyakarta: Jurnal Masalah Sosial, Politik, dan Kebijakan, v. 19, n.1, p. 31-38, 2015.

COELHO, Teixeira. Transnacionalização cultural. In: ____. Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. São Paulo :Editora Iluminuras Ltda, p. 358, 1997.

ALMEIDA, Naiane.; NICOLAU, Marcos. O poder de atração dos K-dramas: o soft power e a hibridização no contexto do fenômeno global Hallyu. In: CASTILHO, Fernanda; LEMOS, Ligia Prezia. Ficção Seriada: estudos e pesquisas. Alumínio: Jogo de Palavras, p. 121-132, 2018.

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URBANO, Krystal; MAZUR, Daniela; ARAUJO, Mayara; ALBUQUERQUE, Afonso. K-pop, ativismo de fã e desobediência epistêmica: um olhar decolonial sobre os ARMYs do BTS. Rio de Janeiro: Revista Logos (UERJ), v. 27, n. 3, p. 177-192, 2020.

ISSO não é uma treta de gerações. Entrevistadoras: Bárbara Dewet e Érica Imenes. Entrevistadas: Daniela Mazur e Tássia Assis. [S.l.]: Kpapo, jan. 2021. Podcast.  Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/6T3otQzE985z12hIDlv9ua?si=7c9c2baaf6124cf7>. Acesso em: 29 jun. 2022.

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