Rebeldes com causa: a inspiração em Demian torna atemporal a linguagem única e transformadora do fenômeno BTS

A TRILOGIA ESCOLAR – THE SCHOOL TRILOGY I: Demian

Autora: Maria M. S. Avila
Revisado por Bianca Ribeiro, Isabella Teles e Laura Mello

“[…] sente sempre um desejo de fazer versos. […] versos sobre a natureza agonizante e a juventude perdida” (HESSE, 2019. p. 84).

O grupo sul-coreano Bangtan Sonyeondan, conhecido mundialmente pela sigla BTS, inicia sua carreira astronômica com o single “No More Dream”, principal música do seu álbum de debut, “2 Cool 4 Skool”. 

(Imagem promocional ao álbum de debut 2 Cool 4 Skool de 2013)

O mesmo dia entediante, os dias só se repetem
Adultos e pais
Injetam um sonho preso em moldes
[…]
Rebele-se contra a sociedade infernal
Os sonhos são um perdão especial
Pergunte a si mesmo sobre o perfil dos sonhos
Torne-se o principal sujeito da sua vida
Que sempre foi oprimida.
(trecho da música “No More Dream” — BTS)

Na trilogia escolar — apelidada dessa forma por ter como conceito a abordagem e crítica ao modelo de ensino sul-coreano, bem como os reflexos que essa cultura intransigente causa na sociedade e, principalmente, nas novas gerações —, diversas faixas, além do videoclipe de seu debut “No More Dream” fazem alusão à sua realidade autoimposta e de como eles querem se libertar dela por não a considerarem mais o mundo ideal. 

(MV de “N.O”. — faixa presente no álbum “O!RUL8, 2?” que contesta o modelo educacional vigente)

Todo mundo pensa da mesma maneira que eu
Eu esqueci completamente da minha infância,
quando eu tinha muitos sonhos.
[…]
O que você sonhava em ser?
Quem é a pessoa que você vê no espelho?
(trecho da música No More Dream — BTS)

É observando o conceito da primeira trilogia que torna-se possível fazer ligações entre as questões sociais levantadas pelos artistas e também a abordagem que o livro “Demian”, um romance premiado do autor alemão Hermann Hesse, — escrito como um protesto ao modelo de vida germânico do início do século XX —, utiliza na obra para se referir ao modelo principiológico em voga durante a infância do menino Sinclair, seu protagonista. 

(MV de N.O. — faixa presente no álbum O!RUL8, 2? que contesta o modelo educacional vigente)

Isso porque, embora o auge do referencial de “Demian” no Bangtan Universe — universo fictício criado exclusivamente para explorar todos os conceitos audiovisuais trabalhados pelo grupo sul-coreano — seja com o álbum “Wings”, os elementos distintivos do livro já se mostram no grupo desde seu primórdio, fazendo aparições através das letras de suas músicas e do conceito principal da primeira trilogia.

— a luta contra o mundo: era minha forma de protesto. […] Se o mundo não podia utilizar homens como eu, se não tinha para mim nenhum lugar melhor nem podia arranjar-me uma função mais alta, então não me restava outro caminho senão o aniquilamento. Pior para o mundo (HESSE, 2019. p. 90/91).
(membro — e personagem do Bangtan Universe — Seokjin em cena do MV de Blood, Sweat & Tears, considerados por muitos o auge referencial de “Demian” dentro do Bangtan Universe)

O livro publicado em 1919 possui uma linguagem simples, de fácil assimilação e o autor não procura esconder suas intenções durante a narração; ainda que se possa e deva utilizar da biografia de Hermann Hesse e da época de sua escrita para analisá-lo, isso serve meramente para enriquecer algo que, por si só, já é notavelmente compreendido pelo leitor. 

        Tomando a liberdade de observar o discurso e os conceitos escolhidos pelo BTS, faz sentido a escolha deste livro em particular como referencial para a construção da narrativa do grupo. 

“Demian”, por não dar grandes detalhes sobre o tempo e espaço ao seu redor, acaba por tornar-se uma obra que transpõe as barreiras históricas e geográficas. A peça chave do livro é o despertar do jovem Emil Sinclair para o mundo real, a dualidade entre o que ele até então considerava correto e seguro à sua nova percepção de que não é possível voltar ao que era, uma vez que conheceu o outro lado do mundo e seus problemas. A intenção de Herman Hesse é criticar a sociedade em que vivia. Ao observar os MVs e a história ficcional criada pelo BTS, fica evidente a inspiração na obra.

Adultos dizem que essa vida é fácil
Dizem que eu sou muito feliz, então por que eu sou tão infeliz?
Não há nenhum assunto que não seja estudar
Há tantos outros garotos como eu lá fora, vivendo a vida como marionete
Quem cuida de mim?”
(trecho da música “N.O”. — BTS)

O enredo, voltado puramente para os questionamentos e a subjetividade do narrador, trazem a busca de Sinclair por encontrar o seu eu, deixar para trás o comodismo e o conforto do seu lar, o mundo iluminado do qual ele não se sente mais parte, e avançar, ainda que temeroso, no caminho do mundo sombrio. É esta dualidade, apresentada logo nas primeiras linhas da obra, que nos acompanha até o seu fim. 

[…] mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. […] sabe a insensatez e a confusão, a loucura e o sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais mentir a si mesmos (HESSE, 2019. p. 10).

O livro publicado logo após a primeira guerra mundial teve o público alvo alcançado com sucesso pelos jovens europeus na época, principalmente os alemães, que passavam por momentos de crise, cuja fé tanto no sistema educacional da época quanto na religião caía por terra. A narração fácil e empática de Hermann Hesse foi recebida por uma juventude que se considerava perdida e sem grandes perspectivas, pois puderam se identificar com as mesmas reflexões que o jovem Sinclair teve em seu processo de amadurecimento e viram na figura de Demian a imagem da transgressão e rebeldia, ainda que de maneira polida e contida e, principalmente, repleta de erudição. Erudição essa que ele usava para criticar tudo que era ensinado em sua escola. 

(Imagem publicitária para a colaboração com a SK Telecom em 2015)

Não muito distante disso, na segunda década do século XXI, BTS nos convida a refletir sobre as mesmas questões já na faixa introdutória de seu primeiro álbum de carreira, o “2 Cool 4 Skool”, em um trecho que traduzindo livremente diz:

Jovens em seus 10 e 20 anos 
Vamos falar sobre isso de forma fácil. 
Você consegue.

E segue nos introduzindo, com suas músicas e videoclipes, a uma narrativa questionadora do mundo ao nosso redor, do estilo de vida que levamos e de como as gerações anteriores não são capazes de compreender e resolver os problemas das posteriores, ainda que tenham passado por situações semelhantes. 

A armadilha de uma realidade abandonada,
na armadilha de uma juventude.
Enquanto eu carregava aquela cega fé,
a minha escolha foi a certa.
Alguém meio anjo e meio diabo disse
(trecho da música “Road/Path” — BTS)

Também, nessa era, eles já compreendem o conceito de uma dicotomia de mundos, da indecisão entre o mundo luminoso (ideal) e o mundo sombrio (real) que é tratado em “Demian”  como um ponto central para a edificação da personalidade de Emil Sinclair.

Vivemos a mesma vida e tem que se tornar o número um
Para nós é como um vida dupla entre o sonho e a realidade
Quem nos faz uma máquina de estudos?
Você é o número um ou um fracasso
Adultos fizeram esta moldura e nós caímos nela.
(trecho da música “N.O.” — BTS)

Sendo assim, é compreendendo a forma que o BTS utiliza a obra de Herman Hesse como um referencial logo em seus primórdios, que o espectador pode entender  a trajetória que o grupo segue em seu universo fictício até os dias atuais, nessa mescla de estilos narrativos que envolvem letra, som e imagem, que vão somando à medida que adentram a cada era, novas influências e abordagens que encontramos ainda dentro de Demian.

“Era uma descoberta dura e tinha um áspero sabor, pois trazia consigo um princípio de responsabilidade, um adeus definitivo à infância e um anúncio de solidão e isolamento” (HESSE, 2019. p. 74).

Como exemplo disso, podemos identificar elementos filosóficos Nietzschianos presentes nas duas obras na forma de contestar a ideia de rebanho, aquela em que o homem toma ações mediante o instinto de seguir a multidão ao invés de se individualizar.

“Somente as ideias que vivemos é que têm valor”
 (HESSE, 2019. p. 75).

Fazer todas essas associações entre o livro publicado em 1919 e o conteúdo produzido pelo grupo sul-coreano que debutou em 2013 se dá sem dificuldade, sobretudo porque em ambas as obras é relatado um processo de reeducação, conforme descrito no livro: “um laborioso apagar das pegadas que o puritanismo educacional deixa impressas na alma adolescente: a timidez, a humildade, o alheamento — armas obsoletas com a hostilidade do mundo real —- e que conduzem, mais tarde, inapelavelmente à solidão e à inadaptabilidade, à surda revolta e ao amargo constrangimento  (HESSE, 2019. p. 190)”.

Me lembro do meu jovem eu
Eu não tinha nenhuma preocupação.
(trecho da música “Interlude” — BTS)

Tratam-se de histórias e narrativas atemporais, que discorrem sobre problemas enfrentados que qualquer geração pode se identificar, que não deixam de levar em conta o mundo exterior, mas preocupam-se o bastante com a autodescoberta, a individualização do homem, a autorreflexão. Preocupam-se, enfim, com o ato de olhar para um espelho e buscar a imagem do eu e, através disso, encontrar seu lugar, sua importância, valorizar-se e, quem sabe, atingir o tão sonhado amor-próprio.

Será que eu mudei?
Se eu tivesse escolhido um caminho diferente,
se eu tivesse parado e olhado para trás
[…]
No final desta estrada, onde você estará?
(trecho da música “Road/Path” — BTS)
(Quadro de Demian pintado por Sinclair no capítulo 4: Beatrice. Arte proveniente de Alianza Editorial, Madrid 2016. Ilustrado por Bastian Kupfer)
(Nos short-films de “Wings” — 2016, a personagem Jungkook pinta um retrato inspirado em seus sonhos)

Para essa primeira trilogia, o grupo Bangtan Sonyeondan aproveitou-se do conceito escolar já muito usado no kpop para dar um passo a mais, delimitar sua diferença com outros grupos do meio e definir-se como um destaque mundial não apenas para o cenário musical, mas como o artístico como um todo. Ao fazerem uso de diversos meios audiovisuais, eles retornam às questões discutidas em obras atemporais como “Demian” para comunicar que a sociedade não está tão longe assim do que era décadas atrás e ainda tem muito o que refletir e mudar. 

E embora nos álbuns posteriores a essa era tenham deixado para trás a estética colegial, ainda bebem da temática de “Demian” para falar sobre questões referentes à subjetividade humana, a busca pelo eu, o amadurecimento do homem e a crise moral e ética que frequentemente nos afeta. 

É engraçado, quando era criança acreditava que tudo era possível
Até sentir o aperto de ganhar a vida todos os dias
[…]
Todo dia é uma repetição de ctrl+c, ctrl+v
Tenho um longo caminho a percorrer,
 mas por que continuo no mesmo lugar?
É frustrante, mesmo que eu grite, só dá eco no vazio
Espero que amanhã algo seja diferente de hoje
É a única coisa que imploro
(trecho da música “Tomorrow” – BTS)

HESSE, Hermann; Demian. 51° ed. Rio de Janeiro: Record, 2019.

HYBE LABELS. BTS (방탄소년단) WINGS Short Film #1 BEGIN. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yR73I0z5ms0. Acesso em: 06 maio. 2023.

HYBE LABELS. BTS (방탄소년단) ‘피 땀 눈물 (Blood Sweat & Tears)’ Official MV. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hmE9f-TEutc. Acesso em: 06 maio. 2023.

HYBE LABELS. BTS (방탄소년단) ‘N.O’ Official MV. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r5GaAEHvHj0. Acesso em: 06 maio. 2023.

HYBE LABELS. BTS (방탄소년단) ‘No More Dream’ Official MV. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rBG5L7UsUxA. Acesso em: 06 maio. 2023.

RM. et al. No More Dream. Seul: BigHit Entertainment, 2013.

RM. et al. Road/Path. Seul: BigHit Entertainment, 2013.

Slow Rabbit. et al. Interlude. Seul: BigHit Entertainment, 2013.

SUGA. et al. Tomorrow. Seul: BigHit Entertainment, 2014.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

MUITO MAIS