Por Painel Como Fazer
Revisado por: Maria Skolute e Mariana Parolini
No dia 13 de dezembro de 2022, o membro mais velho do BTS, Jin, deu início ao seu alistamento militar. A prática, comum e obrigatória no âmbito das Forças Armadas sul-coreanas, é sempre atravessada por muitas dúvidas, principalmente quando um ou mais idols estão envolvidos.
Não por acaso, o anúncio do alistamento de Jin gerou muitas manchetes: desde questionamentos sobre as possibilidades de isenção ou suspensão do procedimento devido ao sucesso internacional do BTS, até o uso de sua imagem para fins de propaganda política e militar da Coreia do Sul.
Pensando nisso, o Painel Como Fazer elaborou este informativo que tem por objetivo esclarecer os principais pontos do serviço militar obrigatório sul-coreano, além de mostrar sua relação com a história do país e seus impactos sobre a carreira dos artistas e cidadãos.
CONTEXTO HISTÓRICO
Os primeiros indícios de alistamento obrigatório remetem à Dinastia Goryeo, quando pessoas eram incorporadas ao serviço militar independentemente de sexo e idade, nos quais permaneceram até a Dinastia Joseon. Naquele período, o serviço militar poderia ser substituído por impostos pagos ao governo (MMA, s/d). Esse sistema foi expandido para servidores privados depois da invasão japonesa em 1592, mas caiu em desuso devido aos privilégios da aristocracia.
Em 1905, com a assinatura do Tratado de Eulsa, o então Império Coreano tornou-se um protetorado do Japão. Cinco anos depois (1910), os japoneses ocuparam oficialmente a península coreana, anexando seu território através do Tratado Japão-Coreia. A dominação japonesa se estendeu até o final da Segunda Guerra Mundial (1945), quando os países do Eixo foram derrotados. Depois disso, estadunidenses e soviéticos deram início às negociações para retirar as tropas do Japão e formalizar a divisão do território coreano. Essa divisão, vale ressaltar, ocorreu sem a realização de uma consulta à população e teve como antecedente as disputas geopolíticas que já haviam acontecido no Paralelo 38, envolvendo a Rússia e o Japão (Guerra Russo-Japonesa, em 1904).
Depois da Libertação da Coreia (1945), o país iniciou um processo de modernização e consolidação do exército nacional com ajuda do Escritório do Governo Militar dos Estados Unidos, seu principal aliado durante a Guerra Fria. Isso aconteceu pois, durante a colonização japonesa, existiam muitas milícias privadas e organizações militares paralelas na Coreia do Sul que atuavam na defesa do território nacional. Em 1946, com apoio de Washington, o Esquadrão de Patrulha de Defesa da Coreia do Sul foi estabelecido seguido pelo Ministério de Defesa Nacional (MMA, s/d).
Com as constantes incursões da Coreia do Norte ao longo do Paralelo 38, o governo sul-coreano atuou para fortalecer seu sistema de defesa. Assim, o Ministério de Defesa Nacional iniciou a preparação da Lei do Serviço Militar para estabelecer “um sistema de recrutamento obrigatório” e anunciou, em caráter temporário, a “Lei sobre as Medidas Temporárias para o Serviço Militar para o Estabelecimento do Pessoal Militar Voluntário para Salvar a Nação” em janeiro de 1949 (MMA, s/d). Em agosto do mesmo ano, a Lei do Serviço Militar foi anunciada com novas regras de recrutamento (MMA, s/d) e, dois anos depois (1950), houve um exame de recrutamento em escala nacional pela primeira vez na história.
O recrutamento obrigatório se fortaleceu ainda mais após o início da Guerra da Coreia. O conflito, que durou três anos (1950-1953) e ocorreu durante a Guerra Fria, simbolizou a disputa das duas grandes potências da época: Estados Unidos e União Soviética. Nesse ínterim, a Coreia do Norte foi apoiada pela URSS e, posteriormente, pela China, enquanto a Coreia do Sul foi apoiada pelos Estados Unidos. Como agravante para essa disputa, estava a posição geográfica estratégica do território coreano banhado pelo Mar Amarelo, Mar do Japão e o Oceano Pacífico, e sua proximidade em relação à China e à Vladivostok – pólo científico e militar soviético. Colocava-se em jogo, portanto, a soberania desses países (PEREIRA, 2017).
O conflito provocou milhares de mortes e suas consequências geram tensões na península coreana até os dias de hoje. Nesse contexto, o Segundo Registro Universal de Alistamento Militar que aconteceu em agosto de 1951, recrutou cerca de 200.000 soldados (MMA, s/d). Desde então, as diretrizes e principais procedimentos de recrutamento passaram a ser realizados pela reestruturada Administração de Mão de Obra Militar (Military Manpower Administration). Em 1962, a Lei de Serviço Militar foi alterada para seus moldes atuais.
Com o fim da Guerra, essa necessidade não cessou. Em 1953, houve um acordo de armistício entre a Coreia do Norte, a China e os Estados Unidos no qual foi decretado o fim das hostilidades entre os países, mas isso não consolidou um acordo de paz permanente (LEE E MARKUSEN, 2003). Esse armistício criou a Zona Desmilitarizada ao redor do Paralelo 38 e, no mesmo ano, a Coreia do Sul e os Estados Unidos assinaram um Tratado de Defesa Mútua com o objetivo de “fortalecer o tecido da paz na região do Pacífico” sob as bandeiras do direito internacional, segurança e justiça (FELIPPE, 2019, p.27). Por essa razão, tecnicamente, as Coreias do Sul e do Norte ainda estão em guerra. Este é, portanto, o argumento que justifica a necessidade do serviço obrigatório que permanece até os dias de hoje.
O alistamento obrigatório é algo que só acontece na Coreia do Sul? A resposta é: Não. Outros países como a Rússia, cujo serviço militar nacional dura cerca de um ano, Belarus, onde os soldados servem por 18 meses, a Suíça, onde o serviço dura aproximadamente 21 semanas, e a Dinamarca também possuem regras de alistamento obrigatório. Na Lituânia, o serviço foi abolido em 2008, porém retornou em 2016 após o acirramento das tensões entre Rússia e Ucrânia (ZUBOVA, 2022). Essa dinâmica é diferente do Brasil, por exemplo, onde todos os homens maiores de 18 anos são obrigados a se alistar, mas não a servir, podendo ser dispensados ou considerados “excesso de contingente” no momento de sua inscrição. Quais são, então, as regras de alistamento na Coreia do Sul?
O EXÉRCITO SUL-COREANO E O SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO
Como no Brasil, as Forças Armadas da Coreia do Sul são compostas de: Exército, Marinha e Força Aérea. A Constituição sul-coreana, em seu artigo 39 (1), prevê que todos os cidadãos têm o dever de defesa nacional nas condições prescritas pela Constituição. Como dito anteriormente, o alistamento é administrado pelo Military Manpower Administration (MMA) com base na legislação vigente.
O Military Service Act, ou Ato de Serviço Militar, é o documento que estabelece as principais diretrizes para o serviço militar na Coreia do Sul. Ele oferece informações importantes sobre os tipos de alistamento, os períodos correspondentes a cada um deles e as atividades desempenhadas pelos militares nas Forças Armadas. O Ato define que toda pessoa do sexo masculino da República da Coreia “deve prestar serviço militar fielmente”, dedicando às mulheres a opção de servirem às Forças Armadas em caráter voluntário. Alguns termos presentes no Ato nos ajudam a compreender este universo que faz parte do cotidiano dos sul-coreanos e cujo impacto afeta diretamente a rotina dos idols:
QUADRO 1. Termos importantes do Ato de Serviço Militar sul-coreano
Recrutamento (conscription) | Significa que o Estado impõe o dever de prestar serviço ativo a qualquer pessoa responsável pelo serviço militar para servir nas Forças Armadas |
Alistamento nas Forças Armadas (enlistment in the military) | Significa que uma pessoa responsável pelo serviço militar entra em uma das suas unidades por meio de recrutamento, convocação ou voluntariado. |
Cadete oficial (officer cadet) | Significa: um cadete que recebe educação, treinamento, etc. em uma instituição de ensino militar ou agência de treinamento, para ser designado para registro militar como oficial, oficial de garantia e suboficial. |
Destacamento (secondment) | Significa que o status de uma pessoa que serve como militar ativo é alterado para que ele possa estar envolvido nas funções de guarda de segurança de uma instituição correcional, policial de choque ou bombeiro obrigatório. |
Pessoal de serviço público (public duty personnel) | Significa pessoas convocadas para servir em um campo de interesse público para apoiar deveres de serviço social, deveres administrativos etc. relacionados ao bem-estar social, higiene, serviço médico, educação, cultura, meio ambiente, segurança, etc. ou para promover artes e esportes, ou para cooperação internacional, que são necessários para as seguintes agências servindo o interesse público (agências estatais, governos locais, organizações públicas ou instalações de assistência social). |
O processo de alistamento começa com o cadastro dos homens sul-coreanos no Primeiro Serviço de Cidadania (First Citizen Service) ao completarem 18 anos (KLRI, 2011). Depois disso, a partir dos 19 anos, eles têm que escolher o momento em que vão passar por exames, que medirão suas capacidades físicas e psicológicas, assim como definirão se estão aptos ou não ao serviço militar. Muitos escolhem completar essa etapa logo quando completam 20 anos, como é o caso de Park Seo Joon que cumpriu o alistamento nessa idade antes de deslanchar na carreira de ator. Depois do exame, os candidatos são divididos em níveis de acordo com suas capacidades, conforme aponta o Quadro 2.
Quadro 2. Graus de adequação ao serviço militar
Graus I, II, III e IV | Condição física e psicológica suficiente para realização do serviço ativo ou suplementar | Pode ser alistado para o serviço ativo, serviço suplementar ou o segundo serviço ao cidadão com base em suas qualificações, tais como formação acadêmica e idade |
Grau V | Incapazes de entrar no serviço ativo ou militar, mas capazes de entrar no segundo serviço de cidadão | Podem ser alistados para o segundo serviço de cidadania |
Grau VI | Incapazes de exercer o serviço militar devido a qualquer doença ou incompetência mental ou física | São dispensados do serviço militar |
Grau VII | Pessoas que não puderam ser classificadas de acordo com os graus 1 a 3 devido a qualquer doença ou incompetência mental ou física | São submetidas a um exame físico de acompanhamento e depois designadas para o segundo serviço de cidadania |
O que define o tempo total de serviço que os soldados irão prestar é o local de serviço onde estarão alocados. Esse tempo pode variar entre 18 e 48 meses, conforme mostra o Quadro 3. No caso de Jin, o serviço deve durar aproximadamente 18 meses, já que ele foi alocado na base militar de Yeoncheon, que fica localizada no norte da província de Gyeonggi próximo à fronteira com a Coreia do Norte. Esse tempo de serviço inclui 5 semanas de treinamento básico pelo qual todo recruta deve passar e é composto por tarefas como manuseio de armas, marchas e caminhadas.
LOCAL DE SERVIÇO MILITAR | TEMPO DE ATUAÇÃO |
---|---|
MARINHA E EXÉRCITO | 21 MESES |
EXÉRCITO NAVAL | 23 MESES |
FORÇA AÉREA | 24 MESES |
SERVIÇOS NÃO-ATIVOS | 24 A 48 MESES |
Até 2020, todos os homens entre 18 e 28 anos tinham a obrigação de passar pelo serviço militar. Em 2020, no entanto, o Parlamento sul-coreano aprovou uma lei permitindo que o alistamento fosse postergado até os 30 anos para aqueles que obtiveram algum reconhecimento público pelos serviços culturais prestados à nação (BBC, 2020). Segundo a emenda, “um artista da cultura pop que foi recomendado pelo Ministro da Cultura, Esportes e Turismo por ter melhorado a imagem da Coreia tanto dentro da nação, quanto no mundo” está habilitado a adiar o serviço militar até os 30 anos. Logo, os membros do BTS puderam estender seu prazo por mais 2 anos, já que eles receberam a medalha da Ordem do Mérito Cultural Hwagwan em 2018.
Porém, essa não é a única exceção à lei de alistamento obrigatório. Alguns artistas, músicos clássicos, medalhistas olímpicos e atletas também podem receber isenção desde que suas conquistas sejam reconhecidas como benefícios à imagem internacional da Coreia do Sul – requisito que antecede a “Lei BTS”.
O jogador de futebol Son Heung-Min, que atua no clube inglês Tottenham, prestou apenas 3 semanas de serviço militar e 544 horas de serviço comunitário após ajudar a Coreia do Sul a vencer os Jogos Asiáticos de 2018 (BBC SPORTS, 2020).
Outra opção para aqueles que desejam “se esquivar” do serviço militar é a dupla nacionalidade. Alguns artistas, por exemplo, podem optar em não assumir a nacionalidade coreana e, com isso, se isentam do alistamento obrigatório. Os membros Felix e Bang Chan do boy group Stray Kids, ambos australianos, optaram por manter esta nacionalidade e não precisarão cumprir os anos de serviço militar. Essa, porém, é uma questão que gera bastante polêmica devido ao nacionalismo, pois aqueles que optam por outra nacionalidade são considerados estrangeiros na Coreia.
POR QUE SE ALISTAR?
“o serviço militar é a expressão da lealdade à nação, por si só.”
(MMA, s.d.)
Prestar serviço militar na Coreia do Sul é uma prática quase tão antiga quanto a fundação do próprio país – que, como já foi dito, só se tornou um Estado separado do norte nos anos 1950. Dessa forma, é possível afirmar que esse costume produziu (e continua produzindo) marcas na sociedade sul-coreana. Até aqui, vimos questões mais técnicas sobre o processo de alistamento obrigatório, porém outras ainda estão em aberto: Por que se alistar? O alistamento obrigatório é amplamente aceito pelos sul-coreanos? O que significa se alistar na Coreia do Sul?
Para respondê-las, vamos voltar novamente à Guerra das Coreias (1950-1953). É esse conflito que muda a relação entre o Estado coreano e o exército. A partir disso, a noção pré-moderna de um exército composto apenas por homens de famílias com tradição guerreira foi superada e substituída pela visão de que todos os homens nascidos no país deveriam compor as trincheiras como uma forma de demonstrar sua lealdade à nação. Essa nova diretriz fez com que ao longo dos três anos de guerra o número de soldados saltasse de 100 000 para 650 000, apesar das perdas humanas sofridas nesse tempo (MOON, 2005, p. 46 apud KIM, 1971, p. 37-40).
Isso veio acompanhado da necessidade de criar mecanismos que diferenciassem e opusessem os coreanos do sul dos do norte – já que eles compartilhavam centenas de anos de história em comum – como forma de justificar a fronteira que passou a separar um mesmo povo. Nesse sentido, a Guerra das Coreias serviu como justificativa para a porção sul do território, aliada aos Estados Unidos, fortalecer o anticomunismo no país que posteriormente se tornou um aspecto indissociável de sua forma de se pensar enquanto nação. Em outras palavras, ser sul-coreano se tornava ser anticomunista.
Tal questão fica clara quando recorremos às fontes do próprio governo sul-coreano sobre o conflito, nas quais alegam que:
Nesse trecho é possível perceber a criação de uma distinção entre o Norte (comunista) e o Sul (capitalista), e mais do que isso, o Sul se apresentando como defensor da liberdade em contraposição ao Norte que “destruiu o país e assassinou milhões de pessoas”. A partir dessa menção, somos induzidos a concluir que todos os sul-coreanos prestam o serviço militar de bom grado, contagiados pelo amor ao seu país. Isso, portanto, mostra como o alistamento militar é incorporado à própria identidade do país e funciona como um catalisador de sentimentos nacionalistas.
Moon Seungkook (2005), por sua vez, demonstra que não é bem assim. A autora (2005, p. 46-47) apresenta diversos movimentos contrários ao alistamento em massa desde sua institucionalização, nos anos 50, até os dias de hoje. Isso porque, esse suposto “patriotismo” inflamado dos jovens soldados só teria sido possível após ações incisivas do Estado para (i) alterar a visão negativa que os coreanos tinham sobre os soldados e seu ofício dentro da corporação; (ii) desenvolver mecanismos que diminuíssem a evasão militar.
Sobre esse primeiro aspecto, Moon retoma a ideia de “masculinidade hegemônica” coreana construída ao longo da Dinastia Chosun (1392-1897), fortemente influenciada pelo neo-confucionismo. Por mais de 500 anos, o ideal de masculinidade girava em torno do “cavalheiro estudioso” (sônbi) que deveria evitar trabalhos braçais. Logo, aqueles que se tornassem soldados estariam inevitavelmente se afastando desse propósito. Seguindo essa lógica, não é exagero dizer que o serviço militar obrigatório estaria então distanciando todos os homens sul-coreanos de se tornarem homens ideais. Uma imposição como essa foi extremamente impopular.
Paralelamente, a influência da herança colonial japonesa dentro da corporação militar contribui para uma resistência ainda maior dos sul-coreanos em aceitarem as novas leis. Isso porque, durante o período da dominação japonesa na região, os coreanos que se juntavam ao exército eram submetidos a castigos ainda mais severos que os soldados japoneses – que já eram conhecidos por serem violentos. Essa experiência passada fez com que uma parcela considerável da população sul-coreana associasse o exército a “lesões e morte” (MOON, 2005, p. 48). Dessa forma, para muitos homens, evadir o serviço militar era uma questão de sobrevivência.
Mas, afinal, se houve tanta resistência, qual o sentido de manter o alistamento obrigatório?
Chegamos, então, a outro ponto crucial para entendermos esse fenômeno. Agora que já sabemos a lógica de funcionamento do alistamento e como ele se construiu historicamente, partimos para compreender de que forma se mantém, até porque, uma vez criada a lei que impunha o serviço militar a todos os homens, era preciso garantir o seu cumprimento e aceitação geral.
Nesse sentido, uma das táticas mais efetivas para combater a evasão empregada já nos anos 70, foi a proibição da contratação de trabalhadores que não tivessem a certificação da realização do ofício militar (MOON, 2005, p. 52). Dessa forma, todos os homens que compõem a classe trabalhadora não teriam acesso ao seu único meio de sobrevivência: a venda da sua força de trabalho em troca de um salário. Essa medida limitou os trabalhadores sul-coreanos, fazendo-os “escolherem” entre uma possível morte no exército e um fim certo fora dele.
A difícil tarefa de obter a aceitação da população sobre esse dever foi enfrentada pelos governos sucessores à Rhee, os quais passaram a introduzir no cotidiano da população diversos alertas sobre a ameaça comunista que a Coreia do Norte representava. Entre os folhetos dos jornais, as rádios de notícia e os livros didáticos, denúncias forjadas de espionagem e crimes de guerra norte-coreanos não faltavam. Com isso, o Estado e as elites sul-coreanas produziram um tensionamento constante entre a população, que passou a aceitar e defender a militarização como forma de garantir a sua suposta liberdade.
Aos poucos, se tornar um soldado passou a ser uma parte indissociável do que significa ser um homem sul-coreano.
IMPACTOS SOBRE A CARREIRA DOS IDOLS
Como vimos até aqui, o alistamento militar na Coreia do Sul segue a ideia de que “todos os cidadãos de uma nação são responsáveis pela defesa de seu país”. Porém, devido aos riscos e pressões, cumprir com essa responsabilidade vem se tornando uma tarefa cada vez mais complexa. Pela lei, aqueles que não cumprem o serviço dentro do prazo estipulado,que tentam evadir ou se recusam a servir, podem receber penas de prisão ou multas.
Mesmo assim, é cada vez maior o número de pessoas que tentam fraudar laudos médicos para indicar alguma incapacidade física e/ou mental que termine com a dispensa do serviço. Esse é o caso do rapper Ravi do grupo VIXX que está sendo investigado por tentar burlar o serviço militar com um laudo médico falso de epilepsia.
Além disso, muitos coreanos se preocupam em como estarão suas vidas após a saída do exército em relação a dinheiro, carreira, emprego, formação universitária, vida amorosa, dentre outros. E isso não é diferente com os idols. Em algumas situações, (1) alguns grupos e artistas que têm certa influência em suas companhias podem não ter tanta preocupação com sua vida financeira, (2) a empresa pode escolher não investir mais na carreira e anular o contrato do artista, (3) o grupo pode entrar em hiatus e no seu retorno não apresentar bons resultados, ocasionando um disband.
Todas essas preocupações são colocadas sobre a mesa quando um artista decide dar início ao serviço militar. E não foi diferente com o BTS. Depois do fatídico 14 de junho de 2022, quando o grupo anunciou que daria um tempo para focar em projetos pessoais, muitos rumores surgiram. A questão do alistamento vem sendo discutida pelo Bangtan há bastante tempo, assim como muito do impasse que envolve a questão, foi provocado pelo próprio governo sul-coreano. Foi ventilada, inclusive, a possibilidade de realizar uma consulta pública para saber se os membros deveriam se alistar ou não, tamanha a repercussão do assunto (THE GUARDIAN, 2022). Sem retorno sobre uma possível isenção, todos os membros do BTS decidiram iniciar o processo, a começar por Jin, sendo j-hope o segundo a confirmar o alistamento — que deve ocorrer até maio deste ano.
Autoridades do Exército relatam que os cantores passam pelos mesmos processos que outros homens sul-coreanos, começando com treinamento de combate durante cinco semanas antes de serem designados para unidades e funções específicas. Porém, a preocupação ainda existe, devido ao tempo mínimo de serviço ser de 18 meses. Para um grupo que lança de 2 a 4 álbuns por ano, esse tempo afastado das atividades pode prejudicar o trabalho dos artistas e o ganho das empresas.
Os casos de bullying e os impactos do alistamento sobre a saúde mental são outros temas recorrentes e muitas vezes se tornam alvos do debate público. O caso mais conhecido é o do cantor Taemin, do grupo SHINee que, após relatar uma piora nos sintomas de depressão e ansiedade, teve que ser realocado para o serviço público no início de 2022. Esse é um problema que não afeta somente os artistas, mas muitos jovens coreanos que são submetidos ao treinamento militar.
As mulheres coreanas e os girl groups, apesar de não serem diretamente afetados pela ausência de obrigatoriedade na prestação do serviço militar, são colocadas em uma posição de suposta superioridade em relação aos homens. Um dos argumentos levantados é que por não terem que se afastar de suas atividades por 2 anos, as mulheres teriam alguma espécie de “vantagem” em suas vidas profissionais e acadêmicas.
Em relação a vida amorosa, muitos coreanos tendem a optar pela separação antes de iniciar as atividades no exército. O exemplo mais recente é o idol Jay B (GOT7) que estava em um relacionamento amoroso e anunciou a separação pouco antes de se alistar ao exército. Isso, no entanto, não é regra: Taeyang (BIGBANG) se casou pouco antes de realizar o mesmo procedimento.
Por fim, é importante frisar que o alistamento obrigatório pode afetar não apenas de modo individual como também o grupo, dificultando sua volta aos palcos, como foi relatado pelo idol Hui (PENTAGON) durante sua participação em um programa para debut de um novo grupo de kpop, Boys Planet. Ele revelou que após seu retorno do serviço militar, percebeu a mudança no meio midiático e como estava sendo difícil encontrar trabalho para o grupo.
Ufa! Se você chegou até aqui, já entendeu como esse tema é bastante complexo. Como podemos ver ao longo do texto, muitas questões atravessam esse debate e muitas delas ainda enfrentam o peso da opinião pública, tanto na Coreia do Sul quanto em outros países. A influência de outros Estados, tais como a China e os Estados Unidos, as tensões entre as Coreias e o impasse político interno — que ora aponta para tratativas de aproximação na península, ora pressionam pelo seu distanciamento — não nos permitem prever como essa questão será tratada nos próximos anos. Como sempre fazemos questão de pontuar: tudo é político. Enquanto isso, seguimos observando como esse tema e seus desdobramentos continuarão a afetar a carreira dos idols, principalmente do BTS!
Até a próxima, Aca-Armys!
Referências
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BBC SPORTS. Son Heung-min: Tottenham forward wins award as South Korea military service ends. Disponível em: <https://www.bbc.com/sport/football/52587297>. Acesso em: 8 mar. 2023.
FELIPPE, Fabricia. Repensando a Guerra da Coreia: o papel das grandes potências na criação e perpetuação do conflito na Península Coreana. Centro Universitário IBMEC, 2019.
KLRI. Korea Legislation Research Institute. Military Service Act. 2011. Disponível em: <https://elaw.klri.re.kr/eng_service/lawView.do?lang=ENG&hseq=25744>. Acesso em: 30 jan. 2023.
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LEE, Yong-Sook; MARKUSEN, Ann. The South Korean defense industry in the post-Cold War era. IN: Markusen, Ann; DIGIOVANNA, Sean e LEARY, Michael C. (Eds). From Defense to Development? International perspectives on realizing the peace dividend. Routledge, 2003.
MESSIAS, L. BTS no exército: Entenda como funciona o serviço militar na Coreia do Sul. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/musica/noticia/2022/10/bts-no-exercito-entenda-como-funciona-o-servico-militar-na-coreia-do-sul.ghtml>.Acesso em: 01 fev. 2023.
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PEREIRA, Verónica de Gouveia. Como o Paralelo 38 influenciou a geoestratégia da Península Coreana?. 5º Curso de Pós-Graduação em Globalização, Diplomacia e Segurança, 2017.
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4 respostas para “SAIBA MAIS: Militarização da Coreia do Sul e regras do alistamento obrigatório”
Excelente matéria! Impecável e de imensa importância para quem tem dúvidas sobre como é todo o processo que envolve o alistamento militar na Coreia do Sul.
Conteúdo explicativo, coerente e rico em detalhes – algo que eu, particularmente, procurava.
Obrigada pela publicação! 👏👏
Obrigada pelo feedback! Ainda teremos mais conteúdos sobre militarização e idols no exército!
amei a materia super completa, mas ainda tenho uma duvida. como e escolhida a base militar que o recruta vai servir, e ele que escolhe ou vai de acordo com o serviço que ele se proproe a fazer, ou e determinado pela provinicia que nasceu?
Excelente explicação, deu para entender com clareza como funciona todo o processo de alistamento. Parabéns texto bem explicativo.